Combater o coronavírus e o capital

A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o coronavírus (oficialmente, Covid-19) como uma pandemia na última quarta-feira (11/3). Essa é uma situação de saúde pública na qual uma doença se propaga pelo mundo de forma rápida e simultânea. Os primeiros casos de contaminação interna já foram diagnosticados no Brasil e há projeções de um crescimento exponencial[1] de casos nas próximas semanas.

[Source]

Na China, país em que o novo vírus foi identificado pela primeira vez, a reação inicial do governo foi negar a existência do vírus e perseguir aqueles que o denunciavam. O caso mais emblemático foi o do médico oftalmologista Li Wenliang, que morreu infectado pelo coronavírus dias após ser investigado sob acusação de “espalhar boatos” e “comportamento ilegal”.

Em Wuhan, cidade que ficou conhecida por ser o epicentro do vírus, em 19 de janeiro – um dia antes que o governo admitisse a possibilidade da contaminação entre seres humanos –, um banquete público de “10 mil famílias” foi realizado como espetáculo no distrito de Baibuting Garden. Sete semanas se passaram entre o aparecimento dos primeiros sintomas no início de dezembro e a decisão do governo de bloquear a cidade[2].

É preciso se perguntar se o coronavírus teria se transformado em uma pandemia não fosse a negligência do governo chinês. Certo é que, no mínimo, milhares de casos teriam sido evitados.

Itália

Após uma série de medidas contraditórias e ineficazes do governo italiano, até o momento há mais de 17 mil contaminados e cerca de 1,3 mil mortos. A taxa de letalidade no país passa dos 6%, quase o dobro da média mundial, que é de 3,4%. Seguindo a cartilha da burocracia chinesa, o governo de Giuseppe Conte, apelando para a necessidade da “unidade nacional”, bloqueou fronteiras, fechou bares das 18 às 6 horas, impediu a realização de assembleias de trabalhadores, tentou banir manifestações públicas e ordenou a suspensão de todas as greves e manifestações políticas até 31 de março. Por outro lado, permitiu o funcionamento normal do transporte, dos supermercados etc.[3]

As tradicionais organizações dos trabalhadores e da juventude do país deveriam usar toda sua estrutura organizativa para explicar em cada local de trabalho, escola e bairros, que essa pandemia é fruto do sistema capitalista e, portanto, que as consequências serão jogadas nas costas da classe trabalhadora, levando milhares à morte em todo o mundo. Ao invés disso, decidiram fazer parte da unidade nacional com o governo, aceitando as proibições das paralisações e assembleias sem qualquer questionamento da estrutura atual. Em algumas fábricas os trabalhadores não aceitaram tal submissão e organizaram greves, pois as condições reais a que esses operários estão submetidos são mais devastadoras que o medo do contágio.

Não foram só a incapacidade e os erros do atual governo que agravaram a situação na Itália. O argumento para as medidas tomadas se baseava na necessidade de impedir um colapso do sistema de saúde que sofre cortes há 30 anos. O total de investimento na área foi reduzido para 6,5% do PIB, valor que, segundo a OMS, torna um Estado incapaz de garantir o direito à atenção básica. Dados oficiais mostram que esse direito não é uma realidade para 11 milhões de italianos. De 2009 a 2017, mais de 46 mil trabalhadores da saúde foram demitidos. Nos últimos 10 anos, a Itália perdeu 70 mil leitos nos hospitais. Nas UTIs, cruciais na atual epidemia, existiam 922 leitos por 100 mil habitantes em 1980, hoje são 262[4].

As medidas se tornaram mais extremas nos últimos dias, após os decretos de 8 e 12 de março. Na região Norte do país, onde o impacto foi maior, se estabeleceu uma zona vermelha. As pessoas desta zona não podem realizar reuniões em locais abertos ou fechados e empresas terão que interromper a atividade em todos os departamentos não essenciais à produção. A Lombardia, região mais atingida pelo vírus, queria também a suspensão do transporte público e o fechamento das fábricas. Mas a pressão dos industriais foi mais forte[5]. No restante do país, se estabeleceu a zona laranja e praticamente todas as regras da zona vermelha são válidas. Qualquer pessoa só pode sair de casa por “motivos comprovados de saúde ou trabalho”[6].

Tudo isso, no entanto, são apenas medidas de restrição que jogam a responsabilidade para a população, isentando os verdadeiros responsáveis, os governos que destroem os serviços públicos em detrimento do capital. Nenhuma política pública realmente eficaz foi tomada, porque qualquer ação séria implica em mexer com as bases da estrutura econômica italiana.

Irã

Outro país em que a crise do coronavírus se agravou foi o Irã. Até o dia 12 de março, os dados oficiais do governo apontavam 10.075 infectados e 429 óbitos causados pelo coronavírus. Entretanto, cerca de 70 médicos iranianos que moram nos Estados Unidos e Europa enviaram uma carta à OMS[7], no dia 13, acusando o regime de ocultar o alcance do coronavírus no território e denunciando que o número de mortos pode chegar a 3 mil.

O fato é que até o dia 17 de fevereiro, o governo iraniano ainda negava a existência do vírus no país. O objetivo era impedir que a celebração do 41º aniversário da revolução, em 11 de fevereiro, e que as eleições parlamentares, em 21 de fevereiro, fossem afetadas. Apesar dos esforços do regime, a participação em ambos os eventos foi a mais baixa de sua história[8].

No Irã, os hospitais não possuem equipamento médico suficiente para lidar com a crise. As pessoas não confiam nos hospitais e muitos que estão potencialmente infectados não serão examinados. A população teme que, quem não tiver o vírus, contrairá nos hospitais. Aqueles que se internam, são colocados na mesma sala com mais de uma dúzia de portadores potenciais, onde a transmissão é altamente provável.

Covid-19 no Brasil

Com a chegada do vírus no Brasil, o governo Bolsonaro não fez diferente e começou minimizando o impacto da doença no país. Quem melhor expressou as intenções do governo foi ministro da Economia, Paulo Guedes, ao declarar que “gostaria de saber se o Legislativo vai aprovar o marco regulatório do saneamento básico, assim como a privatização da Eletrobras[9]. A justificativa de Guedes é que a venda da Eletrobras e a abertura para o investimento da iniciativa privada no saneamento básico vão gerar renda para o governo e, assim, possibilitar o combate ao novo vírus. Se está faltando dinheiro, por que não se supende o pagamento da Dívida, por exemplo?

A declaração não só deixa claro que a única preocupação do governo é aprofundar os ataques em curso, como evidencia mais uma vez as fissuras entre o Legislativo e o Executivo. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), rebateu Guedes, alegando que as propostas do pacote “anticoronavírus” são medíocres. Enquanto setores da burguesia trocam farpas para ver quem consegue ser o melhor serviçal do imperialismo, nenhuma ação prática eficaz de contenção do coronavírus é tomada.

Um exemplo disso é a total inércia do Congresso na última semana. O ministro da Saúde pediu R$ 5 bilhões para financiar as atividades de combate ao vírus. Nem o governo manda uma medida para isto (por exemplo, um pedido de crédito emergencial, frente a uma calamidade pública, que não precisa respeitar o “teto” das despesas) nem o Congresso toma qualquer iniciativa para desbloquear R$ 5 bilhões de outras partes do orçamento.

Enquanto isso acontece, uma das poucas medidas que iam na direção dos mais pobres, a extensão do Benefício de Prestação Continuada – paga aos maiores de 65 anos que não têm direito a aposentadoria – derrubando um veto de Bolsonaro, foi “suspensa” pelo Tribunal de Contas da União.

Em teoria esse é um órgão “auxiliar” do Congresso, mas, na prática, ele se mantém “acima” da vontade dos representantes eleitos pelo povo.

Principalmente, porque os parlamentares não se dão nenhum respeito e ficam em “joguinhos” com o orçamento aprovado ao invés de aprovar a verba necessária para a Saúde. O ministro Guedes estuda medidas para “apoiar” as empresas aéreas e de turismo, que estão “sofrendo” com a crise. Ou seja, dinheiro para os pobres, não tem. Para as empresas “sofredoras”, aí sobra.

A Saúde no Brasil

A taxa de letalidade do coronavírus é considerada alta por especialistas, mas é apenas um pouco maior que a letalidade de gripes comuns e não se compara a doenças como o Ebola (cuja taxa já variou de 25% a 90% dependendo do surto). Mas a sua capacidade de transmissão é mais alta (o número básico de transmissão da H1N1 é de 1,3 pessoas, enquanto a transmissão do Covid-19, de acordo com o Ministério da Saúde, pode variar de 2 a 6,5). No Brasil, não existe estrutura para enfrentar isso. Sobretudo com os cortes do último período, a aprovação da Emenda Constitucional 95 que congela o limite de verbas dos serviços públicos por 20 anos e as medidas de Bolsonaro para aplicar essa emenda, como é o caso da Portaria 2.979/2019, que dita novas regras para a distribuição de verbas da Saúde.

O governo sabe que, com um surto de doentes chegando aos postos e hospitais, o risco é que o sistema de saúde entre em colapso e esses lugares se transformem em ambientes de proliferação do vírus. Até o dia 13 de março, foram confirmados 98 casos em todo o país, segundo o Ministério da Saúde. Porém, o Hospital Albert Einstein já atestava 98, só em São Paulo, no mesmo dia, e essas pessoas só parcialmente entraram na conta do Ministério da Saúde. Se nem fazer a estatística direito o governo consegue, que dirá combater o vírus.

Um exemplo foi dado no Rio de Janeiro. O Hospital Maternidade de Acari foi designado como referência para internação e tratamento do coronavírus. Sem outra informação, centenas de pessoas com sintomas gripais se acumularam no local para atendimento. Ou seja, os bebês recém-nascidos ficaram mais vulneráveis à gripe comum. Além de, segundo entrevistas de funcionários do hospital, ninguém ter recebido informações de como proceder. Os leitos, pretensamente disponíveis, estão em uma ala fechada que está sendo reformada com urgência. Sobre a contratação de pessoal específico para este atendimento, nenhuma notícia. É evidente que se a epidemia avançar, o caos vai ser instalado rapidamente.

Medidas repressivas, como as tomadas na China, Irã, Itália, entre outros países, não resolverão o problema. A intensificação dos cortes e privatizações também não. Essas medidas que a burguesia vem tomando mostram-se inúteis e mais perigosas para a maioria da população, que depende de sistemas de saúdes públicos completamente sucateados, quando existem. A crise está expondo a podridão do regime capitalista e só intensificará a ira popular diante de seus governos e do próprio capitalismo.

As medidas iniciais tomadas ainda são tímidas e ineficientes, pois, como na Itália, medidas sérias implicam em colocar o dedo na ferida: fazer uma reviravolta na estrutura econômica. Alguns estados brasileiros estão cancelando aulas e atividades que podem formar aglomerações, mas não há uma ação coordenada nacionalmente. O cancelamento de aulas da educação básica[10] não ajuda em nada – as crianças ficarão em casa, com os pais sendo obrigados a trabalhar. Quem cuidará delas? Nas escolas, poderiam receber instruções de higiene, aprender a lavar as mãos corretamente, continuar recebendo a alimentação etc. Medidas de higiene diárias ajudariam muito mais do que soltar as crianças nas ruas sem nenhuma orientação.

Medidas urgentes que deveriam ser tomadas

Higiene: Qualquer governo minimamente comprometido em agir contra a contaminação deveria começar exigindo que todas as empresas públicas e privadas comecem a estocar álcool gel e que implementem serviços de limpezas diária imediatamente em todos os locais de trabalho para garantir a saúde dos trabalhadores. Todas as empresas devem ter serviços que ensinem como higienizar as mãos, como deve ser o uso de álcool gel, combater as “fake news” de que água quente e chá resolvem o problema etc. Além disso, toda empresa deveria ter um kit de teste de temperatura para verificar sintomas imediatamente e encaminhar material para teste de todos que apresentem variação de temperatura, tosse, espirros etc.

Obrigatoriedade de limpeza constante de todos os meios de transporte, de escadas e corrimões, portas e maçanetas em todos os locais públicos (trens, metrôs, ônibus, shoppings, lojas, bancos etc.).

Economia: Todo o dinheiro necessário deve ser utilizado para combater a pandemia. Para isso, a EC 95 deve ser revogada e o pagamento da Dívida deve ser suspenso imediatamente. Além disso, o governo precisa encampar todos os laboratórios, hospitais e clínicas de saúde privados e colocá-los a serviço da população.

A especulação com o álcool gel resultou em um aumento de mais 200% no preço desse produto em algumas regiões do país. Essa prática deveria ser combatida por meio da encampação de qualquer banco ou empresa que tente explorar o momento para obter maiores lucros. A produção de álcool combustível precisaria ser revertida imediatamente para álcool gel e outros materiais desinfetantes.

Pagamento de salários para todos os trabalhadores colocados em quarentena por serem portadores ou suspeitos de portarem o coronavírus, sem a burocracia de esperar laudos ou o “auxílio-doença” do INSS.

Serviços de saúde: Contratação imediata de médicos, enfermeiros e auxiliares de saúde. Reabertura de todos os leitos hospitalares fechados nos últimos anos. Transformação urgente de UTIs em UTIs isoladas onde os pacientes possam ser internados. Compra de máquinas de respiração artificial que se farão necessárias. Testes para todos os que apresentarem sintomas (o teste é produzido no Brasil). Equipes de enfermeiros e auxiliares para visitar idosos que apresentem sintomas e colher material em suas casas, ao invés de serem infectados em postos de saúde.

Conclusão

As medidas mais urgentes poderiam ser implementadas rapidamente, mas é certo que não há vontade política do governo Bolsonaro de agir nesse sentido. Ao mesmo tempo, as direções da classe trabalhadora – CUT, UNE, UBES, PT, PSOL etc. –, simplesmente aderem ao apelo de unidade nacional cancelando os atos do dia 14 e 18 sem explicar para a população que o governo é, sim, responsável pela situação em que se encontra a saúde pública hoje e pela contaminação no país. Sejamos diretos – sem as medidas emergenciais que garantam transporte, limpeza etc., em todos os locais, fazer concentrações ou mesmo ir ao cinema pode levar à contaminação. O medo tem razões reais, motivos reais e as medidas do governo não ajudam em nada.

Todos os esforços em garantir a proteção da vida dos jovens e trabalhadores do país e do mundo devem ser assegurados, mas certamente este também é um momento em que os trabalhadores podem elevar sua consciência de classe. Por isso, para combater o coronavírus, é preciso combater os responsáveis pela destruição do SUS e da Previdência. É preciso combater pelo Fora Bolsonaro, por um governo dos trabalhadores sem patrões nem generais. Surtos e epidemias seriam enfrentados de forma eficiente em uma sociedade onde a economia fosse planificada, pois todos os esforços da produção seriam rapidamente redirecionados. Enquanto permanecer a anarquia da produção, a humanidade continuará ameaçada por novos vírus e doenças. Essa não é a primeira vez nem será a última que a classe trabalhadora paga com a vida pelos desmandos do sistema, por isso, a frase de Marx e Engels está mais viva do que nunca: Trabalhadores do mundo uni-vos.

Referências:

[1] Folha de S.Paulo. Ministério da Saúde alerta hospitais sobre pico do coronavírus. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/casos-de-coronavirus-devem-comecar-a-crescer-exponencialmente-no-brasil.shtml. Acesso em 13 mar. 2020

[2] O GLOBO. Como a omissão do governo chinês pode ter contribuído para a disseminação do coronavírus. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/como-omissao-do-governo-chines-pode-ter-contribuido-para-disseminacao-do-coronavirus-24225574. Acesso em 13 mar. 2020.

[3] Esquerda Marxista. Resposta da Itália ao coronavírus: medidas indiscriminadas e difusão do medo. Disponível em: https://www.marxismo.org.br/resposta-da-italia-ao-coronavirus-medidas-indiscriminadas-e-difusao-do-medo/. Acesso em 13 mar. 2020.

[4] In Defense of Marxism. Italy: the coronavirus epidemic is an emergency, but capitalism is the real disaster. Disponível em: https://www.marxist.com/italy-the-coronavirus-epidemic-is-an-emergency-but-capitalism-is-the-real-disaster.htm. Acesso em 13 mar. 2020.

[5] G1. Na Itália, número de mortos pelo novo coronavírus passa de 820.Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/03/11/na-italia-numero-de-mortos-pelo-novo-coronavirus-passa-de-820.ghtml. Acesso em 13 mar. 2020.

[6] Público. Porque está a Itália a ser tão afectada pelo novo coronavírus e a ter tantas mortes?. Disponível em: https://www.publico.pt/2020/03/13/mundo/noticia/italia-tao-afectada-novo-coronavirus-tantas-mortes-1907421. Acesso em 13 mar. 2020.

[7] EFE. Médicos acusam Irã de ocultar dados e 3 mil mortes causadas pelo coronavírus. Disponível em: https://www.efe.com/efe/brasil/portada/medicos-acusam-ir-de-ocultar-dados-e-3-mil-mortes-causadas-pelo-coronavirus/50000237-4194675?utm_source=wwwefecom&utm_medium=rss&utm_campaign=rss#. Acesso em 13 mar. 2020.

[8] Esquerda Marxista. Irã: o “enfermo” do Oriente Médio. Disponível em: https://www.marxismo.org.br/ira-o-enfermo-do-oriente-medio/. Acesso em 13 mar. 2020.

[9] O Estado de S.Paulo. Guedes promete programa ‘anticoronavírus’ e cobra de Congresso aprovação de reformas. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,guedes-promete-programa-anticoronavirus-e-cobra-de-congresso-aprovacao-de-reformas,70003231776. Acesso em 13 mar. 2020.

[10] Folha de S.Paulo. Medidas de restrição contra o coronavírus têm consequências sérias, dizem especialistas. Disponível em:https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/medidas-de-restricao-contra-o-coronavirus-tem-consequencias-serias-dizem-especialistas.shtml?origin=folha. Acesso em 14 mar. 2020.

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