A República Catalã foi esmagada sem luta pelo Estado espanhol

Depois de uma semana de reviravoltas, indecisão e uma tentativa de última hora para uma saída negociada, a República Catalã foi proclamada na sexta-feira, 27 de outubro. Dezenas de milhares de pessoas celebraram nas ruas de Barcelona e em diversas cidades da Catalunha.

Como esperado, o Estado espanhol respondeu destituindo o governo catalão, dissolvendo o parlamento catalão e convocando eleições antecipadas para o dia 21 de dezembro. O palco foi preparado para um enfrentamento intenso, mas os nacionalistas burgueses e pequeno-burgueses no governo catalão saíram de cena. Na segunda-feira, o Estado espanhol preparou-se para retomar o controle total sem quebrar uma única vidraça.

No início da semana passada, tudo indicava que Puigdemont não teria alternativa além de declarar a independência. O governo espanhol anunciou uma série de medidas contra a autonomia catalã baseado no Artigo 155 da Constituição, que foram aprovadas no Senado espanhol em 27 de outubro, com o total apoio de Cs (Ciudadanos) e do PSOE (Partido Socialista). Puigdemont tentou, por diversas vezes, abrir diálogo com Rajoy e buscou a mediação da União Europeia, mas seus apelos foram categoricamente rejeitados.

Na quarta-feira, uma reunião do Junts pel Sí (JxSi), grupo do Parlamento Catalão (que compreende o PDECAT de Puigdemont, o ERC de Junqueras e alguns independentes) deu ao presidente catalão total apoio para a declaração da independência. Na noite do mesmo dia, houve grandes reuniões internas convocadas por ERC, PDECAT e também pela Assembleia Nacional Catalã (ANC) para explicar a seus membros e apoiadores que o plano era declarar, na sexta-feira, a República Catalã.

Na mesma noite, houve um protesto organizado pelos comitês regionais de Barcelona em Defesa do Referendo para pressionar pela proclamação da República. A manifestação ocorreu na Plaça Sant Jaume, mas o governo catalão decidiu cercar o Parc de la Ciutadella, onde está localizado o prédio do Parlamento catalão. Como no dia 10 de outubro, o governo catalão queria se certificar de que o Parlamento não ficaria submetido à pressão direta das massas.

Então houve uma virada. Uma reunião da direção do movimento pró-independência aconteceu na manhã da quinta-feira, mas parecia que a opção ainda era a proclamação da Independência. Entretanto, naquela noite, começou uma efervescência com uma série de ligações telefônicas e negociações por parte do Presidente basco, Urkullu, e seu PNV (Partido Nacionalista Basco). Urkullu está em situação muito difícil. Ele tem um acordo com Rajoy no qual o PNV concede a maioria necessária de votos no Parlamento espanhol para aprovar o orçamento em troca de concessões fiscais à administração basca. Contudo, o conflito catalão tencionou este pacto. O PNV foi colocado na difícil posição de apoiar o governo espanhol, que está suprimindo os direitos democráticos catalães. É, portanto, do interesse dos capitalistas bascos e do interesse político do PNV que um acordo seja alcançado.

A base do compromisso sugerido era que Puigdemont convocaria eleições antecipadas ao parlamento catalão, em vez de declarar a independência. Em troca, parece que ele estava pedindo imunidade contra a acusação e a libertação dos “dois Jordis” (os líderes da ANC e de Omnium, detidos sem fiança sob acusações de sedição). Na manhã da terça-feira, 26 de outubro, parecia que esse acordo estava em jogo. Puigdemont anunciou que iria fazer uma declaração ao meio-dia. A bolsa de valores espanhola se recuperou.

Contudo, houve uma série de fatores que frustraram o acordo. Em primeiro lugar, está a natureza reacionária da classe dominante espanhola, para quem a unidade da Espanha é um princípio sacrossanto, um dos pilares do regime de 1978. De seu ponto de vista, quaisquer concessões sobre esta questão ameaçariam todo o edifício. Dar a Puigdemont uma saída pode ser interpretado como sinal de debilidade. Rajoy está sob a pressão da ala direita de seu próprio partido e de Ciudadanos, que veem o nacionalismo espanhol raivoso como vencedor do voto. No final, a promessa de um acordo negociado por Urkullu com o governo espanhol não se materializou.

Ademais, quando se filtraram as notícias de que Puigdemont iria anunciar eleições em vez de proclamar a República, a pressão começou a aumentar a partir de seu próprio campo. Dois membros do parlamento catalão, de PDECAT, anunciaram que estavam renunciando aos seus mandatos e rasgando os seus cartões de filiação ao partido. O aliado de PDECAT em JxSi (Juntos pelo sim), o ERC, já estava falando de traição. Puigdemont agiu como o proverbial Duque de York. Tendo marchado com suas tropas ao topo da colina, agora tornou-se difícil convencê-las a marchar colina abaixo. Para completar, dezenas de milhares de estudantes estavam nas ruas exigindo que a República fosse proclamada. A greve dos estudantes foi convocada antecipadamente e os manifestantes receberam as notícias do recuo de Puigdemont quando a marcha estava a ponto de ser iniciada a partir da Plaça Universitat. O ânimo tornou-se raivoso. Houve gritos contra Puigdemont (“que fique avisado PDECAT, nossa paciência acabou”). A manifestação abriu caminho à Plaça Sant Jaume, do lado de fora do prédio da Generalitat, e os estudantes prometeram não ir embora até que a República fosse proclamada.

Primeiro, Puigdemont atrasou sua declaração por uma hora. Em seguida, disse que ela não iria ocorrer. Logo, foi do Palácio ao Parlamento até as 17 horas, pouco antes da sessão do Parlamento começar. Mas, quando falou, o acordo estava cancelado. Ainda assim, em vez de anunciar corajosamente que decidira ir em frente e proclamar a República, voltou a abordar o tema, anunciando que considerou convocar eleições, mas que não havia logrado chegar a um acordo e dizendo que estava colocando a questão no Parlamento para este decidir, sem fazer nenhuma proposta concreta. Este foi mais um sinal das coisas que estavam por vir.

Finalmente, na sexta-feira, 27 de outubro, o Parlamento Catalão declarou a independência com 70 votos a favor, duas abstenções e 10 votos contra, depois  do PP, Cs e PSOE abandonarem a sessão em protesto. Dezenas de milhares de pessoas que se encontravam do lado de fora esperando pela decisão acompanharam a votação com atenção e, em seguida, irromperam em aclamações celebrando a decisão. A celebração logo alcançou a Plaça Sant Jaume. No que lhes dizia respeito, a República Catalã havia nascido e eles estavam prontos para defendê-la.

Quase simultaneamente, o Senado espanhol aprovou as medidas do Artigo 155 solicitadas pelo governo: demissão do governo catalão, de seu presidente e vice-presidente e de todos os consellers (ministros); a demissão do chefe da polícia catalã; a dissolução do parlamento catalão e a convocação de eleições antecipadas em 21 de dezembro. O governo catalão seria dirigido diretamente de Madri, com diferentes ministros do governo espanhol encarregados dos departamentos correspondentes na Catalunha.

Isso equivaleu a um golpe, mas Rajoy fez algumas mudanças em seu plano original. Em vez de uma intervenção direta, que poderia demorar seis meses, essa ocorreria no período de tempo o mais curto possível necessário para convocar eleições antecipadas na Catalunha. Claramente, a classe dominante espanhola temia desencadear um movimento de protestos em massa e queria legitimar as medidas o mais cedo possível.

A resposta da “comunidade internacional” também foi rápida. A União Europeia, a OTAN, a OCDE, França, Alemanha, Grã-Bretanha, o Departamento de Estado dos EUA, todos se apressaram em declarar seu pleno apoio à “legalidade espanhola”, à unidade da Espanha e em rechaçar a declaração catalã. As esperanças da burguesia catalã e dos líderes nacionalistas pequeno-burgueses de obter reconhecimento internacional de algum tipo desvaneceram, como se podia prever.

A situação no final da sexta-feira era de tal forma que havia dois diferentes órgãos institucionais, a República Catalã e a Monarquia Espanhola, existindo ao mesmo tempo. Uma situação como esta não poderia durar. Um dos dois havia que prevalecer sobre o outro. O estado espanhol começou a tomar medidas, uma após outra, para garantir que a legalidade espanhola prevalecesse. Mas, o que fizeram os líderes da República Catalã? Basicamente nada, além de emitir declarações vagas falando de “resistência democrática”.

A partir da noite da sexta-feira, a reunião do governo catalão, que deveria adotar uma série de medidas para implementar a decisão de declarar a República, não tomou absolutamente nenhuma decisão. Nenhuma. Na manhã do sábado, o estado espanhol afastou a direção da polícia catalã, Pere Soler e o major Trapero. A primeira coisa que se faz em um golpe é assegurar o controle dos órgãos armados. Os dois concordaram com a ordem e, em uma declaração escrita, aconselharam os policiais catalães a obedecer às ordens. O que fez o governo catalão a respeito disso? Nada.

Os representantes de PDECAT e ERC, que são membros do Congresso e do Senado Espanhol, não renunciaram aos seus mandatos no que para eles era, de fato, um parlamento estrangeiro.

Durante todo o final da semana, o governo catalão, que deveria estar ocupado construindo uma nova República, não fez nada. Bem, o presidente Puigdemont emitiu uma declaração gravada na qual convocava uma “oposição democrática” às medidas do Artigo 155. Só isso. Nenhum apelo à resistência, nenhum plano concreto sobre como resistir, nenhuma medida adotada pelo governo. E a bandeira espanhola ainda flutuava sobre o Palácio da Generalitat.

O vice-presidente catalão, Junqueras (do ERC), escreveu um artigo advertindo que “nos próximos dias teremos que adotar decisões que nem sempre serão fáceis de entender”. Estava claramente preparando suas próprias fileiras para o recuo que já havia sido decidido.

Enquanto isso, centenas de milhares de pessoas (300.000, de acordo com a polícia local) marchavam em uma manifestação totalmente reacionária, em Barcelona, em defesa da unidade espanhola. A marcha foi convocada pela SCC (Sociedade Civil Catalã – um grupo sombrio, cujos fundadores têm ligações com a extrema-direita, mas que, então, tentava limpar sua imagem) contando com o respaldo do PP, de Ciudadanos, bem como do ramo catalão do Partido Socialista. A marcha foi apoiada por meia dezena de organizações abertamente de extrema-direita, fascistas, neonazistas e racistas, que logo atacaram a Generalitat e realizaram uma série de ataques racistas e fascistas. A manifestação era grande, mas ligeiramente menor do que a marcha anterior da unidade espanhola, em 8 de outubro.

Claramente, não era uma manifestação fascista. Os bandos fascistas representam uma pequena franja, embora, nas últimas semanas, tenham se lançado com a conivência e cumplicidade do estado espanhol e necessitem ser combatidos. A maior parte da manifestação era composta por eleitores dos partidos de direita dos bairros de classe alta de Barcelona, pelos pirralhos mimados de Pedralbes, Sarrià-San Gervasi; bem como pelas camadas atrasadas dos bairros da classe trabalhadora em Barcelona e de seu cinturão vermelho. Escandalosamente, o ex-secretário geral do Partido Comunista, Francisco Frutos, foi um dos principais oradores que vociferaram contra o “racismo identitário”, diante de um mar de bandeiras espanholas e de eleitores dos partidos nacionalistas reacionários espanhóis.

Na manhã da segunda-feira, o novo chefe da polícia catalã, sob instruções do ministro espanhol responsável, anunciou que aos consellers agora depostos seria permitido entrarem em seus gabinetes, mas somente para retirar seus pertences pessoais. Se recusassem fazer isso, a polícia devia redigir um informe e enviá-lo ao escritório do procurador.

A presidente do Parlamento Catalão, Carme Forcadell, que havia anunciado que uma reunião ordinária dos porta-vozes ocorreria na terça-feira,  cancelou-a e admitiu que o Parlamento havia sido dissolvido.

Uma reunião do órgão dirigente de ERC decidiu que eles “deviam comparecer em 21 de dezembro”,  dia das eleições convocadas por Rajoy sob o Artigo 155. Um pouco mais tarde, PDECAT anunciou, em termos incertos, que participariam nessas eleições. Essas decisões, e outras que veremos nos próximos dias, representam uma aceitação total do golpe do estado espanhol contra a democracia catalã e uma recusa em defender a República que eles votaram e proclamaram na sexta-feira.

Enquanto escrevíamos essas linhas, foi anunciado que o presidente catalão, Puigdemont, está em Bruxelas junto a alguns membros de seu governo. Isso não altera nada fundamental. Enquanto isso, o procurador do estado espanhol indiciou o presidente catalão, o vice-presidente e todos os ministros do governo catalão, bem como o presidente e os porta-vozes do Parlamento Catalão, por rebelião, sedição, malversação de fundos públicos e outras acusações correlatas. Esta é uma séria advertência, visto que rebelião acarreta uma sentença de 30 anos de prisão. Aliás, esses crimes (rebelião e sedição) estão enumerados no código penal espanhol, que foi herdado por atacado, sem emendas, do de Franco. Isso nos diz algo sobre o caráter real da chamada “transição” espanhola à democracia que deixou intacto o aparato estatal da ditadura. Ademais, mesmo de acordo com esse código penal reacionário, não há razões para as acusações de rebelião, visto que esse crime implica em “levantamento violento”, algo que claramente não ocorreu.

Os políticos burgueses e pequeno-burgueses catalães foram muito longe em seu desafio ao Estado espanhol, mas sempre o fizeram de forma relutante, empurrados para a frente pela pressão combinada da recusa do Estado espanhol em fazer quaisquer concessões e pela irrupção das massas no cenário (em 20 de setembro e em 1 e 3 de outubro).

Isso está perfeitamente em linha com o caráter desses políticos burgueses e pequeno-burgueses, como advertimos repetidamente. O exercício do direito de autodeterminação nas condições concretas da Espanha é uma tarefa revolucionária que somente pode ser realizada por meios revolucionários (ou como subproduto de um movimento revolucionário). Essa é a última coisa que os líderes do PDECAT querem, e os líderes de ERC agiram o tempo todo como um apêndice de PDECAT (embora, na realidade, sejam muito mais fortes eleitoralmente que eles, numa proporção de 3 por 1).

A atitude desses nacionalistas burgueses e pequeno-burgueses encaixa-se nas palavras de Marx em seu “18 Brumário” até a última vírgula:

“Se se pretendia realizar uma luta efetiva, então era uma ideia estranha depor as armas com as quais teria que ser conduzida esta luta. Mas as ameaças revolucionárias da pequena burguesia e de seus representantes democráticos não passam de tentativas de intimidar o adversário. E quando se veem em um beco sem saída, quando se comprometeram o suficiente para tornar necessária a realização de suas ameaças, fazem-no então de maneira ambígua, que evita, principalmente, os meios para se alcançar o objetivo, e tenta encontrar pretextos para sucumbir. A estrepitosa abertura que anunciou a contenda perde-se em um murmúrio pusilânime assim que a luta tem que começar; os atores deixam de se levar a sério e a peça murcha lamentavelmente, como um balão furado”.

Deve-se dizer que à esquerda de JxSi ninguém assumiu a tarefa de organizar a defesa da República Catalã nas ruas, através da mobilização das massas, da desobediência e do fortalecimento dos Comitês para a Defesa do Referendo. Trabalhadores da mídia estatal catalã já haviam advertido que não aceitariam nenhum diretor imposto. O principal sindicato de professores de escolas públicas na Catalunha, USTEC-STEs, também se comprometeu a resistir à intervenção no sistema educacional. O principal sindicato dos funcionários públicos catalães (CATAC) também rejeitou o Artigo 155, mas absteve-se de pedir a desobediência. A possibilidade de se travar uma luta em defesa da República estava ali claramente. Tivesse o governo catalão começado a agir de forma decisiva e audaz e feito um apelo às massas para defendê-lo, teria havido uma luta séria e não está claro em que direção teria ido. Essa é a perspectiva que os Marxistas espanhóis de Lucha de Clases e os Marxistas catalães de Revolució avançaram durante o fim da semana.

Infelizmente, mesmo o CUP, o mais consistente dos partidos de esquerda pró-independência, permaneceu em grande parte silencioso e não deu indicações nem liderança ao movimento. Parece que, mesmo durante a semana que antecedeu a declaração da república, eles estavam enredados nas discussões com JxSi sobre táticas, em vez de fazer apelos diretos ao movimento das massas por cima das cabeças do governo. As palavras de ordem que eles avançaram estavam corretas: “Pão, habitação e trabalho – República agora”, e desempenharam um papel decisivo em promover a formação dos CDRs e sua coordenação nacional. Pareciam não ter uma estratégia clara e independente para assumir a liderança do movimento e acabaram respondendo, principalmente, às decisões tomadas pelo governo catalão.

Deve-se tirar lições claras desta experiência. A luta pelo direito de autodeterminação e por uma República Catalã somente pode ser travada através de meios revolucionários, através da mobilização das massas. Portanto, não pode ser vitoriosa sob a liderança dos políticos pequeno-burgueses, e sim somente sob a liderança da classe trabalhadora. Para que isso seja possível, não pode se limitar apenas a uma luta pelos direitos democráticos e nacionais, mas deve se ligar intimamente às demandas sociais, que somente podem ser resolvidas através da expropriação da classe capitalista. Como a luta por uma República Catalã ameaça todo o edifício do regime de 1978, deve buscar e estabelecer alianças com a classe trabalhadora do Estado espanhol. Essas ideias podem se resumir na palavra de ordem que avançamos: Por uma República Socialista Catalã como uma centelha da revolução ibérica.