Bolívia: Insurreição das Massas Derruba o Presidente

Portuguese translation of Bolivia: a mass insurrection overthrows the president by Jorge Martín (October 18, 2003) "Esta é a vitória dos pobres, dos trabalhadores e dos camponeses". Desta forma Roberto de La Cruz, dirigente do Sindicato dos Trabalhadores de El Alto comemorou a renúncia do odiado "matador de gente" Sanchez de Lozada na tarde da sexta-feira, 17 de outubro. 

Finalmente a revolta que abalou a Bolívia durante quase um mês conseguiu derrubar o gringo Goni como ele é conhecido. Enfrentado por uma mobilização popular em massa, que crescia e ficava mais vigorosa a despeito da brutal repressão causadora de 80 mortes, finalmente o embaixador dos Estados Unidos David Greenlee retirou o apoio a seu títere e reuniu-se com o vice-presidente Carlos Mesa na tarde da quinta-feira, com o propósito de combinarem uma "saída constitucional para a crise", isto é, uma mudança de fachada evitando que todo o edifício ruísse. 

A massa popular, reunida nas ruas da capital e das principais cidades do país paralisadas pela greve geral indefinida convocada pela Central dos Trabalhadores da Bolívia (COB) desde 29 de setembro, celebrou, a um só tempo com júbilo e indignação, a fuga do odiado presidente. Uma vez mais um presidente burguês tivera de fugir de helicóptero para evitar a fúria dos trabalhadores e dos camponeses. Sanchez de Lozada juntou-se a uma lista cada vez mais longa de presidentes latino-americanos que caíram como resultado da mobilização de trabalhadores e camponeses contra a política capitalista de cortes e austeridade.

O poder podia ter sido tomado

A renúncia de Sanchez de Lozada aconteceu no último minuto. Não é claro o que teria acontecido se ele a tivesse retardado mesmo por mais algumas horas. De fato, desde a quarta-feira ficara cada vez mais evidente que todas as condições estavam maduras para a tomada do poder peles operários e camponeses. Somente a falta de ousadia dos líderes proporcionou à classe dominante pequena margem para organizar a substituição.

A greve geral crescia e espalhava-se através do país, e os primeiros elementos do poder dual emergiam, as massas estavam preparadas para irem até o fim; divisões nas fileiras do exército e da polícia tornavam-se mais agudas; a classe média juntava-se aos protestos, e os trabalhadores começaram a organizar comitês de autodefesa. 

Na quinta-feira, por exemplo, a Federação das Juntas Comunitárias (Federation of Neighbourhood Juntas - FEJUVE) de El Alto, organização representativa do poder democrático dos trabalhadores e do povo de uma cidade de 1 milhão de habitantes, instruiu seus membros para formarem "brigadas armadas de autodefesa". A resolução do Comitê Político da FEJUVE determinou que os líderes das 562 Juntas formassem brigadas de autodefesa para enfrentarem o molestamento e assassinatos que vinham sofrendo de parte das forças governamentais. "As brigadas serão compostas de voluntários e fabricarão granadas caseiras e outros artefatos explosivos.

Por outro lado, a chegada de uma coluna de mineiros de Huanani, provida de bananas de dinamite, precipitou as manobras da classe dirigente e da embaixada dos Estados Unidos. Os mineiros tinham sido detidos pelo exército em Patacamaya na quinta-feira, em choques que resultarem na morte de três mineiros. Mas, na sexta-feira os mineiros, sindicalistas e camponeses bloqueados em Patacamaya decidiram firmemente: "Mortos ou vivos passaremos, iremos a La Paz a fim de expulsar o gringo". Muitos alcançaram La Paz atravessando morros. Finalmente o grosso da coluna, composto de 58 caminhões, teve permissão do exército e passou. 

Quando a praça San Francisco já estava inundada de boatos acerca da renúncia do presidente, os mineiros chegaram, começando a distribuír bananas de dinamite. Veja o relato de uma testemunha: "Quase no mesmo instante em que os mineiros marchavam em direção a La Paz a cidade estava completamente deserta. Milhares de pessoas tinham descido à capital, pela rodovia. A cidade tinha pontes destruídas, e vagões atravessados nas estradas formavam barricadas juntamente com pedras espalhadas pelo caminho.

"Mais abaixo, em La Paz, a praça estava apinhada. A mobilização era no mínimo do tamanho da do dia anterior e nós chegamos ao mesmo tempo que rumores corriam anunciando que Goni estaria prestes a renunciar. Como se uma bomba explodisse, a massa popular partiu avante, em direção à Plaza Murillo, onde o palácio presidencial se encontrava protegido por centenas de policiais e soldados. O primeiro cordão policial dissolveu-se e os policiais acabaram por apertar as mãos dos populares. Mas, por trás deles os tanques não se moviam, e portanto o povo desarmado não podia passar.

" (...) e então, os minérios chegaram, também passando por El Alto. Eram rostos vindos de dentro dos profundos poços das minas, com capacetes, bananas de dinamite, pelotões organizados, trazendo também folhas de coca e mantas. ‘Goni, filho da puta, os mineiros chegaram', e o estouro das explosões de dinamite eram ouvidos mesmo antes de estes operários aproximarem-se. A massa aplaudiu-os, com eles entoou hinos, abraçou-os, oferecendo-lhes algo que beber. 

"Deviam ser quatro da tarde. Era quase uma marcha triunfal. ‘Fizemos isto' , e rifles e balas não pararão o povo'. As bananas de dinamite não eram usadas para a defesa, mas para celebrar o fato de o presidente estar prestes a fugir."

Nenhuma confiança em Carlos Mesa e seu governo

Todavia a celebração não pôde ocultar o fato de o movimento estar ciente de que os objetivos da luta ainda não terem sido alcançados: o cancelamento da venda de gás e petróleo, a reforma agrária, o respeito aos direitos dos índios, o fim do molestamento aos produtores de coca etc. 

Assim, a Central dos Trabalhadores da Bolívia - COB resolveu não depositar nenhuma confiança no governo de Carlos Mesa, e decidiu manter indefinidamente a greve até que o novo governo expresse claro compromisso "de não exportar gás, via Chile ou Peru, e cancele a medida relativa à exportação do gás e do petróleo." Uma manifestação ampla da COB, reunindo a vigilância de dezenas de milhares de manifestantes nas ruas, concordou em apresentar um programa básico de reivindicações que o novo presidente deve implementar. ‘É como a bolpress.com noticiou. 

A Central dos Trabalhadores decidiu não apoiar o novo governo porque considera que a renúncia de Gonzalo de Lozada é uma simples mudança de pessoas e não um novo direcionamento do modelo econômico. Ela também prefere manter sua "independência de classe", isto é, "não fazer acordos com um governo que não representa a classe trabalhadora".

O programa de reivindicações da COB incluiu os seguintes pontos: "investigação pelo congresso de todos os contratos concernentes às privações parciais e totais do petróleo, das minas e das estatais", "o cancelamento da lei da terra e a distribuição da terra para os camponeses. Respeito às propriedades fundiárias dos índios ", "revogação de todas as leis contrárias aos direitos dos trabalhadores", "imediata retirada da livre contratação e demissão", "recuperação da indústria nacional, rejeição do livre comércio conforme estabelecido no Acordo de Livre Comércio das Américas - ALCA". Finalmente, exige também o "julgamento dos responsáveis pelo genocídio do povo boliviano". 

O informe da assembléia ampliada da COB termina com uma advertência: qualquer que seja o governo, ele tem de atender às reivindicações populares. Se não for o caso, as ruas e estradas de nosso país serão nossas barricadas outra vez". A Central dos Trabalhadores também convocou uma manifestação popular no sábado 18, para decisão das medidas que tomar próximos dias.

O novo governo pelos motivos expostos nasce extremamente enfraquecido. O recém-empossado presidente teve de pedir permissão aos líderes operários para que permitissem aos parlamentares o comparecimento à sessão do congresso. O fato confirma mais uma vez o que afirmamos antes: o poder estava nas ruas, ao alcance dos trabalhadores e camponeses mobilizados, e se a situação não foi mais além é por quê seus próprios dirigentes não deram o último passo. 

O governo de Mesa tem feito toda sorte de promessas. Não pode agir de outra maneira se quiser ganhar um pouco de tempo a fim de estabelecer alguma forma de base social. No momento ele conta somente com o precário apoio do exército, da embaixada dos Estados Unidos e de um punhado de capitalistas e latifundiários. Desta foprma, o novo governo prometeu submeter a venda de gás a um referendo popular, como também o apoio à cidade de El Alto - o centro mais radical dos protestos - e a convocação de uma assembléia constituinte ou de eleições antecipadas. 

As organizações operárias e campesinas não deviam proporcionar apoio ou espaço para as manobras do novo governante. Mesa era, no final das contas, o vice-presidente de Sanchez de Lozada apenas há uma semana, e é por esta razão também responsável por toda sua política de privatizações e ataques aos operários e camponeses. A mesma coisa se pode afirmar a respeito da anterior coalizão governamental de partidos que abandonou o "presidente matador de gente" a fim de salvar a própria pele. 

No entanto, lideres à semelhança de Evo Morales, na noite da quinta-feira propunham como saída a formação de um governo provisório sob a direção de Mesa, isto é, a mesma proposta que fazia a embaixada americana com a finalidade de salvar o capitalismo na Bolívia. O próprio Evo Morales, na qualidade de líder principal do MAS, já afirmou do novo governo: "daremos a Carlos Mesa algum espaço para respirar, uma trégua, para que se organize e cumpra as promessas feitas ao país."

As táticas da classe dominante serão as de tentar procreastinar, retardar o referendo e uma possível convocação da assembléia constituinte, ao mesmo tempo intensificando apelos para que o povo permaneça calmo em favor da unidade nacional e da "reconstrução do país", visando a desmobilizar as massas populares e, então, quando a situação tornar-se mais favorável, prosseguir na ofensiva. Infelizmente, neste propósito ela pode contar com a colaboração de alguns dirigentes populares, à semelhança de Evo Morales, na suposição de que o país pode mudar fundamentalmente através de medidas constitucionais. 

Contudo a Bolívia já viveu 21 anos de democracia capitalista, sob toda espécie de governo, e os resultados são evidentes para todos: 70% da população vivem abaixo do nível de pobreza e os 30% restantes classificam-se como indigentes e as riquezas do país sempre à disposição do melhor licitante. Este é o único futuro que o capitalismo pode oferecer às massas operárias e camponesas na Bolívia. Estas são precisamente as condições insuportáveis contra as quais elas se levantaram.

Nenhuma mudança na estrutura política do poder resolverá as mais prementes necessidades das massas. Apenas o controle da economia posto nas mãos dos operários e camponeses pode oferecer um resultado satisfatório. A reestatização do gás, a expropriação sem indenização das minas - a começar pelas do próprio Lozada -, uma reforma agrária radical que ponha fim ao latifúndio são as providências que podem colocar nas mãos da grande maioria recursos para melhoria de suas condições de vida. Instintivamente, nestes gloriosos dias revolucionários os trabalhadores das fábricas, os mineiros, os cultivadores de coca (cocaleros), os habitantes de El Alto, em resumo, o povo trabalhador da Bolívia como um todo moveu-se nessa direção. 

É possível que, por falta de lideranças genuinamente revolucionárias, dotadas de um programa claro de tomada do poder pelos operários e camponeses, o movimento possa temporariamente retroceder devido a manobras parlamentares da classe dirigente. Todavia, as massas não foram derrotadas e sentem-se fortes. Nestes dias, tomaram consciência de sua própria força, e será muito difícil para o governo restabelecer a legalidade burguesa. 

O comunicado da COB tornou este ponto claro: "140 vidas perderam-se nas ruas, oferecendo seu sangue pela pátria e demonstrando que, mercê de nossa força, podemos derrubar ditaduras, mesmo que estas usem a roupagem da democracia. Governos, mesmo os mais viciados e sanguinolentos, podem ser derrubados por certeiros golpes populares. Agora, sabemos que através de nossa organização e de nossa luta podemos e devemos derrotar o neoliberalismo."

Uma vez mais, a principal tarefa é construir uma liderança marxista genuína
que possa garantir a vitória. 

18 de outubro de 2003

Tradução de Odon Porto de Almeida