Espanha: manifestações reacionárias e antigovernamentais polarizam o ânimo político

Em dezembro, o partido de esquerda Unidas Podemos (UP) entrou no governo espanhol como sócio menor do social-democrata Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE). Essa coalizão repousava sobre uma maioria parlamentar magra e instável, composta por uma variedade heterogênea de forças nacionalistas e regionalistas. Dois anos de política espanhola sem rumo chegaram ao fim com a queda de Mariano Rajoy. Pablo Iglesias, líder da UP, saudou essa coalizão como “o governo mais progressista” da história espanhola recente. No entanto, os acontecimentos recentes dissiparam essa euforia. A Espanha contempla o abismo de uma depressão devastadora, que reduzirá drasticamente a margem de manobra do governo. É cada vez mais difícil conciliar as demandas radicalmente contraditórias dos trabalhadores e patrões. Os protestos de direita estão polarizando ainda mais o estado de ânimo da sociedade. As relações entre os partidos no poder estão ficando tensas.

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O governo mais progressista da história espanhola?

Quando o Podemos nasceu, destacou-se como uma alternativa radical aos partidos do establishment. Prometeu derrubar o regime que havia saído da transição da Espanha para a democracia burguesa na década de 1970. Assim, o partido aproveitou o descontentamento fervilhante que existia entre a classe trabalhadora e os jovens. Tornou-se extremamente popular. No entanto, os líderes do partido procuravam o poder a todo custo. Sua história é a história da busca por acessos diretos aos cargos públicos. Inicialmente, Pablo Iglesias e seu grupo tentaram superar o PSOE, que tradicionalmente monopolizava o voto de esquerda na Espanha. A princípio, eles também recusaram as ofertas da Esquerda Unida (a marca eleitoral do Partido Comunista) para apresentar uma lista conjunta, até que os eventos os forçaram a retificar em 2016, quando a UP foi fundada. Motivados pelo desejo do poder, eles impediram a formação de um governo do PSOE após as eleições de 2015 e 2016. Estavam confiantes de que logo se converteriam de fazedores de reis em reis. Fizeram críticas corretas aos social-democratas, que encobrem suas políticas burguesas com a demagogia de esquerda. No entanto, essas obstruções sectárias simplesmente galvanizaram a base de apoio do PSOE. Os social-democratas, assim, reverteram seu declínio. Essa política permitiu que Rajoy resistisse à tempestade, apesar de perder o voto popular. Enquanto isso, o PSOE ficou muito feliz em se ver aliviado da pressão de seu flanco esquerdo. Os social-democratas puseram a culpa nos temerários Podemitas pelo fracasso em criar uma alternativa a Rajoy, a quem, de fato, ajudaram a manter o poder por meio de sua abstenção.

À medida que a perspectiva do sorpasso (ultrapassar o PSOE) se afastava e a UP perdia força nas pesquisas de opinião, Pablo Iglesias efetuou uma cambalhota radical. Depois de 2016, ele insistiu que a solução para o impasse político do país estava em uma coalizão, na qual a UP se juntaria ao PSOE como seu sócio menor. Este novo curso foi acompanhado por uma retórica mais moderada. A constituição espanhola, anteriormente execrada como o eixo do odiado regime de 1978, era agora saudada como uma carta quase-socialista. O partido exibe a bandeira vermelha e amarela da monarquia, apela à unidade nacional e busca relações de boa vizinhança com a chamada “burguesia progressista”. Os pedidos de autodeterminação para catalães e bascos foram convenientemente varridos para debaixo do tapete. Pablo Iglesias e Pedro Sánchez, líder do PSOE, colaboraram para derrubar Rajoy em junho de 2018 por meio de um voto de desconfiança. O governo interino de Sánchez contou com o apoio entusiástico dos deputados da UP. Compreensivelmente, o PSOE subiu nas pesquisas de opinião, já que recuperou suas empanadas credenciais de esquerda com os elogios da UP.

Os ziguezagues políticos de Pablo Iglesias em 2015-19 carregam a marca do reformista impaciente que menospreza a classe trabalhadora. Incapaz de derrubar o PSOE de um só golpe, ele concluiu que os trabalhadores são irremediavelmente conservadores e conformistas. Em vez de facilitar um governo do PSOE, mas permanecer na oposição e, assim, manter a independência política, confiante de que o tempo e os eventos provariam que ele estava certo e que a experiência ensinaria os trabalhadores a desconfiar dos social-democratas, ele passou do sectarismo ao oportunismo. Nenhuma das políticas ajudou a reduzir a base social do PSOE. Em nenhum momento Pablo Iglesias mobilizou seus seguidores para tentar mudar o equilíbrio de forças. Em vez disso, ele escolheu manobrar nos corredores do poder, expurgando seu grupo daqueles que se recusavam a dançar ao seu ritmo.

No entanto, ao pedir uma coalizão, Pablo Iglesias caiu numa armadilha. Pedro Sánchez não estava com disposição para compartilhar o poder com esses parceiros imprevisíveis. As eleições de abril de 2019 não lograram formar um governo, pois Sánchez se recusou a entrar em uma coalizão, levando a novas eleições em novembro, onde a esquerda foi punida por eleitores desmoralizados. Esse corretivo levou Pedro Sánchez a trazer para seu gabinete quatro ministros da UP, incluindo dois membros do Partido Comunista, e a nomear Pablo Iglesias como vice-presidente. A formação deste governo em janeiro de 2020, às vésperas da pandemia, foi acompanhada de muita fanfarra. Os líderes da UP acreditam que podem alinhar o PSOE pela esquerda. Na realidade, foram esses sócios menores que foram levados para a direita. Em minoria, compartilhando o poder com um partido que, apesar de toda a retórica de esquerda, está firmemente no bolso das grandes empresas, algemando-se ao governo e perdendo, assim, o direito a críticas independentes. Depois de abandonar as ruas e de tentar superar a classe dominante em seu próprio jogo de política burguesa, e no topo de uma máquina estatal que foi herdada por atacado da ditadura de Franco e que está ligada por um milhão de fios à classe dominante, a UP se colocou na pendente escorregadia das capitulações.

Não há espaço para a colaboração de classe

A crise econômica atingiu a Espanha com força. A economia do país despencou 5,2% no primeiro trimestre do ano. O governo prevê uma queda de 9,2% para todo o ano de 2020. Prevê-se que a taxa de desemprego se aproximará de 20% até o final do ano. Como em 2008, são os jovens, os migrantes e as camadas mais pobres da classe trabalhadora que estão sofrendo o impacto da crise. O desemprego juvenil já atingiu 33%, segundo os últimos números. A dívida pública cresceu à medida que as receitas tributárias caem e a pandemia força novas despesas. Espera-se que aumente para cerca de 115% do PIB nos próximos meses, de acordo com estimativas do próprio governo. Outras previsões indicam 125% até o final do ano. O déficit orçamentário mais que triplicará para 10,3% do PIB, de acordo com as previsões mais conservadoras.

Como em todos os países, o Estado foi chamado a intervir para salvar o capitalismo. Embora o governo tenha adotado algumas medidas para proteger os trabalhadores, como aumentar o salário mínimo e estabelecer uma renda básica para os desempregados que ficaram sem benefícios da seguridade social, e tenha implementado um bloqueio rigoroso que ajudou a superar a pandemia, também canalizou fundos públicos para o setor privado. Cerca de 3,6 milhões de trabalhadores foram demitidos temporariamente, o que significa que o Estado agora paga seus salários, que estão reduzidos a um máximo de 70%, enquanto as empresas estão isentas do pagamento das contribuições para a previdência social. Embora as empresas estejam formalmente obrigadas a reempregar esses trabalhadores no curso de seis meses, a lei está cheia de lacunas que permitirão demissões em massa. O Banco Central da Espanha já alertou que anos de duras medidas de austeridade deverão acompanhar essa despesa excessiva. E, como sempre, a questão é: quem pagará a conta, os trabalhadores ou os capitalistas?

Pablo Iglesias está tentando contornar esta questão. Ele tem a ilusão de que todos estamos no mesmo barco e que a crise será superada pelos esforços patrióticos do trabalho e do capital. Em uma entrevista recente, ele declarou: “É necessário estabelecer uma aliança com os empregadores que cuidam de seus trabalhadores, que produzem riqueza e pagam seus impostos na Espanha, em oposição aos abutres e especuladores“. No entanto, a crise torna impossível a colaboração de classe. Essa verdade vai cair na cabeça de Pablo Iglesias como uma pedrada.

A impossibilidade de conciliar os antagonismos de classe foi evidenciada por uma grande controvérsia sobre a suspensão da lei trabalhista reacionária de Mariano Rajoy de 2012. Apesar da aliança entre o PSOE e a UP, o governo não comanda uma maioria no parlamento, que é extremamente fragmentado, e o executivo baseia-se em combinações frágeis. A renovação das leis de bloqueio em maio exigiu negociações complicadas com diferentes partidos. A deserção dos nacionalistas catalães do bloco dominante forçou Pedro Sánchez a procurar novos aliados. Ele os encontrou nos remanescentes maltratados de Ciudadanos, um partido liberal outrora poderoso que foi praticamente exterminado nas últimas eleições. Ao mesmo tempo, a coalizão precisava renovar o apoio dos nacionalistas bascos de esquerda do EH-Bildu. Em 20 de maio, o governo anunciou que havia alcançado um acordo com o EH-Bildu, que está em meio à campanha eleitoral basca e, portanto, é particularmente exigente. Em troca de seus votos pela extensão do bloqueio, eles garantiram a abolição completa das leis trabalhistas de Rajoy. Isso foi anunciado por EH-Bildu e por Pablo Iglesias, como uma grande vitória para a classe trabalhadora.

No entanto, naquela mesma noite, o indignado representante do sindicato dos patrões telefonou aos ministros do PSOE e exigiu a rescisão do acordo. Os social-democratas, liderados pela ministra das Finanças pró-capitalista Nadia Calviño, cumpriram devidamente, inclinando a cabeça diante dos patrões, como corresponde a esses lacaios de capital. O PSOE anunciou uma modificação do acordo, o que significava que apenas alguns aspectos da legislação trabalhista seriam modificados. Eles não ficaram nem um pouco envergonhados com esse rumo dos acontecimentos. Os social-democratas, cuja função social é seduzir os trabalhadores para o abraço dos capitalistas, são especialistas na arte de fazer promessas de alto nível que mais tarde diluirão ou simplesmente descartarão. Sua lua de mel atual com Ciudadanos facilita essas capitulações. Os nacionalistas bascos de EH-Bildu receberam o golpe com bastante sobriedade. Eles encaravam o acordo como um golpe de propaganda e não tinham ilusões sobre sua real implementação. Pablo Iglesias, pelo contrário, se enfureceu, uma vez que sua tola crença na letra da lei ficou exposta. Ele foi o único que levou o acordo a sério. Nem mesmo a ministra comunista do Trabalho Yolanda Díaz acreditava no pacto. De fato, mesmo antes da Covid-19, ela considerava que a abolição das leis trabalhistas do PP era “pouco prática”. No entanto, após uma explosão inicial, Pablo Iglesias teve que morder a língua. Como parceiro da coalizão, sua capacidade de criticar o governo foi reduzida. Ironicamente, Iñigo Errejón, que representava a ala mais oportunista do início de Podemos e que desertou do partido em 2019, emergiu como um crítico proeminente do governo. Ele está simplesmente explorando a independência política que Pablo Iglesias trocou pelas sinecuras faustianas dos cargos públicos.

Cada vez mais a UP é tratada como uma quinta roda irritante no governo, que o PSOE ostenta quando precisa sustentar suas credenciais de esquerda, e ignora quando assuntos importantes são discutidos; isto é, quando o capital precisa impor sua vontade. A classe dominante, através de seu porta-voz El País, exige unidade e disciplina do governo – isto é, unidade e disciplina a serviço dos capitalistas. Na verdade, considerando a profundidade da crise, a burguesia preferiria uma grande coalizão entre o PSOE e o principal partido de direita, o PP. Mas isso é atualmente inviável, porque a direita está dominada por um delírio reacionário.

Manifestações reacionárias

Mesmo antes do fim do bloqueio, manifestações reacionárias raivosas foram organizadas por elementos de direita e de extrema-direita nos ricos bairros de Madri e logo se espalharam para outras regiões. Seu lema: liberdade! Seu símbolo: a bandeira Bourbon vermelha e amarela. Esses arrebatamentos foram coroados por um desfile motorizado contra o governo organizado pelo partido de extrema-direita Vox em 25 de maio.

A crise provocada pela pandemia está levantando todos os detritos sociais na Espanha. Pequenos empresários e proprietários gananciosos; bruxas franquistas e católicos piedosos; fidalgos em ruína e proprietários despóticos; acionistas, financiadores, especuladores, vigaristas e locatários de todos os tipos; toureiros, jogadores de futebol filisteus e celebridades da imprensa amarela; jovens dourados vestindo camisas berrantes e coletes amassados; cafetões e traficantes de drogas e seus clientes ricos; empreendedores libertários e abutres corporativos; notários, juízes e outros burocratas privilegiados; soldados do exército ativo e reformados, policiais e guardas civis; bandidos neonazistas e carlistas dementes; contrabandistas lumpenproletários e desclassificados – essa é a fisionomia dos protestos atuais. O que os diversos elementos dessa massa têm em comum é que todos eles sugam o corpo da nação trabalhadora (ou desejam fazê-lo). Eles pedem liberdade para explorar, saquear os cofres do Estado e cobrar aluguéis mais livremente. Quando saúdam a Espanha, saúdam seus lucros, aluguéis e direitos. A crise desequilibrou essa massa, condenada ao esquecimento pela história e, portanto, sempre insegura e paranoica sobre seus próprios privilégios. Trabalharam freneticamente contra o governo durante o bloqueio. Qualquer movimento do governo é imediatamente tachado como comunista. O salário mínimo é o comunismo. A reforma da lei do trabalho é o comunismo. O bloqueio é o comunismo. Essa paranoia é apenas um reflexo negativo da impotência e podridão do capitalismo espanhol e de toda a sua superestrutura. O menor tremor ameaça derrubar este edifício devorado por vermes.

As massas reacionárias se apegam ao símbolo de seu regime, a bandeira vermelha e amarela dos Bourbons. Saúdam a polícia e o exército, que, por sua vez, saúdam e mimam as bandas de direita. Essa afinidade nasce da intuição de que são beneficiários do mesmo sistema de opressão e exploração. Quando ativistas de esquerda tentam confrontar os direitistas, a polícia os cerca, prende e espanca. Encorajados pela permissividade da polícia, grupos de extrema direita têm realizado ataques contra ativistas de esquerda com impunidade. Por exemplo, em Granada, a casa do músico Javier Cuesta foi assaltada por bandidos fascistas simplesmente por ter uma bandeira republicana em sua varanda. Em Málaga, um sindicalista da UGT foi espancado por uma gangue que cantava “viva Franco, viva Hitler, viva Vox“.

O ministro da Justiça Grande Marlaska foi forçado a demitir o chefe da Guarda Civil em Madri, coronel Pérez de los Cobos, que tem ligações com a extrema direita e foi responsável pela repressão ao referendo catalão em 2017. De los Cobos sabotou as medidas do governo para proteger os funcionários de grupos de linchamentos de direita. Ele também fabricou relatórios sobre o tratamento da pandemia por parte do executivo que os juízes de direita usariam mais tarde para tramas legais contra o governo. Essa tímida reafirmação do governo foi recebida com ira pelo aparato estatal, com a renúncia de importantes oficiais da Guarda Civil. No entanto, quando o ministro Marlaska puxa o rabo do tigre com uma mão, ele o alimenta com a outra. Ele anunciou um aumento salarial de 20% para os guardas civis para amenizar o clima no quartel. Ele está certo ao inferir que o patriotismo das forças armadas é, em última análise, uma questão de charutos e champanhe, frangos fritos e linguiça de alho. Mas o comedor nunca estará abastecido o suficiente para esses glutões uniformizados.

Os burgueses mais perspicazes da Espanha consideram essas marchas com desprezo e temem seu efeito polarizador. No entanto, setores menos inteligentes da classe dominante, como o oligarca do varejo Juan Roig, simpatizam com eles. A burguesia espanhola é notoriamente parasitária e voraz. Foi desafiada pelo povo muitas vezes na história. Só se sente confortável se tiver controle total e direto sobre o aparato estatal, se empunhar o chicote com as próprias mãos. Mantêm a atual coalizão com desdém. A força política que expressa com mais precisão essa mentalidade é Vox. O referendo catalão de 2017 radicalizou a direita espanhola e permitiu que trombeteasse sua ideologia sem vergonha. O medo e a inação da UP facilitaram esse processo. Assim, o terreno foi preparado para a rápida ascensão do partido franquista Vox em 2018-19.

O partido tradicional do conservadorismo espanhol, o PP, está agora em concorrência com Vox. Gradualmente, virou-se para a direita. Isso bloqueou qualquer tentativa de colaboração com o PSOE, como desejaria um setor da burguesia. O mais preocupante é que, se esses protestos de direita forem longe demais, poderão provocar uma reação poderosa da esquerda. Previsivelmente, a UP reagiu a essas marchas com medo e paralisia. Os jovens e a classe trabalhadora estão mais uma vez sem liderança. Mas em muitos lares da classe trabalhadora, os dentes estão à mostra e os punhos cerrados diante das imagens da reação enlouquecida. Manifestações contrárias espontâneas ocorreram em vários bairros da classe trabalhadora, começando com Vallecas em Madri. Qualquer provocação pode provocar um poderoso e espontâneo transbordamento de raiva que varrerá a reação, revelará seu caráter superficial e a colocará em silêncio. De certa forma, os protestos da direita foram muito formativos. A bandeira da monarquia está agora firmemente conectada à reação. Os vínculos estreitos entre o aparato de Estado repressivo e a reação também ficaram expostos. No entanto, os trabalhadores e jovens espanhóis não se mobilizarão apenas contra a extrema direita, também atacarão o regime em geral e exigirão uma saída revolucionária da crise.

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