2020: um mundo em chamas

A chegada do novo ano foi celebrada com as habituais festas. Em Londres, os foliões saudaram o início de uma nova década com fogos de artifício, assim como muitas pessoas em Edimburgo e em outras grandes cidades. Sem dúvida, o novo Primeiro-Ministro britânico, Boris Johnson, celebrou ainda com mais entusiasmo do que a maioria das outras pessoas. Tendo vencido a eleição geral de 2019 com uma grande maioria, ele agora está livre para levar a nação a uma bem-sucedida conclusão das negociações do Brexit. Essa, pelo menos, é a teoria.

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A realidade, no entanto, é bem diferente.

Os estrategistas sérios do capital estão olhando para o futuro, não com entusiasmo, mas com receio. Lendo as páginas da imprensa financeira, não se pode deixar de lembrar a frase de Bertolt Brecht: “Quem está rindo ainda não ouviu as más notícias”. Em 1 de janeiro, The Economist emitiu um veredito sombrio sobre as perspectivas da economia mundial:

“O crescimento global em 2019 foi o mais lento desde a crise financeira de 2008-09. O PIB mundial aumentou em aproximadamente 2,2%. Neste ano será um pouco melhor, de acordo com as estimativas mais recentes da Economist Intelligence Unit (EIU), uma empresa irmã de The Economist. A EIU prevê que a economia global se expandirá 2,4% em 2020.

“Espera-se que as economias ricas cresçam aproximadamente no mesmo ritmo medíocre de 2019 – a zona do euro, quase exatamente igual: 1,3%, contra os 1,2% do ano passado. A EIU vê uma desaceleração bastante pronunciada na América, de 2,3% a 1,7%, à medida que as tensões comerciais continuam a deprimir o comércio e o investimento.

“A continuação da desaceleração global na indústria também reduzirá o crescimento em todo o mundo. Um Brexit sem acordo pode piorar as coisas, para a Grã-Bretanha e seus parceiros comerciais”.

Um Brexit sem acordo não é de forma alguma impossível. O êxito eleitoral de Boris Johnson parece tê-lo tornado ainda mais estúpido e irresponsável do que era antes. Seu primeiro ato ao retornar ao no 10 de Downing Street (a residência do Primeiro-Ministro) foi o de apresentar um projeto de lei que tornaria ilegal para a Grã-Bretanha prolongar suas negociações com a União Europeia além de dezembro de 2020.

Como todos (exceto o Tea Party do Chapeleiro Maluco que governa agora o Reino Unido) sabem muito bem que é impossível concluir um acordo comercial tão complexo em 12 meses, isso equivale a um ato de insanidade total. A Grã-Bretanha esteve se balançando à beira de um abismo durante os últimos 12 meses. Mas, agora, sob a arrojada liderança do czar Boris, o Primeiro, estamos prestes a dar um passo a frente.

A euforia que tomou conta dos banqueiros e capitalistas quando perceberam que Jeremy Corbyn não seria o próximo primeiro-ministro da Grã-Bretanha não durou muito. A libra esterlina primeiro aumentou, depois despencou quando os centros financeiros do mundo perceberam que a Grã-Bretanha havia pulado da frigideira direto para o fogo.

O alarme nas bolsas de valores mundiais é bem fundado. Um Brexit sem acordo seria um desastre para a Europa, uma catástrofe para a Grã-Bretanha e produziria sérios impactos na economia mundial que, apesar de toda a propaganda triunfalista, se encontra agora em estado extremamente frágil. Qualquer choque sério (um Brexit sem acordo, uma guerra no Oriente Médio etc.) poderia fazer tudo mergulhar em uma profunda recessão – ainda mais profunda e mais grave do que a crise de 2008.

Uma vez que a situação real se torne clara para o povo da Grã-Bretanha, o apoio aos Conservadores (que, na realidade, é muito superficial em todo caso) se evaporará como uma gota d’água numa chapa incandescente. Boris Johnson não será capaz de manter suas promessas no contexto de uma crise econômica que fluirá diretamente da política imbecil que ele e a gang Brexiter, que agora controlam o partido Tory, estão determinados a seguir.

Mas, um momento! Por que incomodarmos nossos cérebros com catástrofes futuras? Vivam o momento! Aproveitem! Comam, bebam e sejam felizes; amanhã… Bom, isso é outra questão. Basta dizer que, na noite de 31 de dezembro, o champanhe fluiu e os céus de Londres foram iluminados pela visão gloriosa de 12.000 fogos de artifício explodindo.

Fogos de artifício em Nova Iorque e em Bagdá

Enquanto isso, a alguns milhares de quilômetros de distância do Atlântico, mais de um milhão de pessoas se reuniam para celebrar o Ano Novo na área em torno da Times Square. Esse evento ocorre todos os anos. Mas, neste ano, houve uma diferença.

Pela primeira vez, a polícia de Nova Iorque planejava utilizar um drone de vigilância para monitorar a festa anual em Times Square. Em adição ao drone, o Departamento de Polícia de Nova Iorque (NYPD) disse que implantaria milhares de câmeras, policiais e outras medidas de segurança para manter os frequentadores em segurança. “Você verá muitos policiais com muitos equipamentos e armas longas”, disse o Comissário de Polícia James O’Neill.

Essas medidas extraordinárias são a expressão gráfica de um novo clima de insegurança que está gradualmente tomando conta da sociedade estadunidense. Esse clima, por sua vez, reflete a extrema instabilidade em escala mundial, na qual os EUA estão sendo absorvidos por conflitos em muitas frentes.

A destruição das Torres Gêmeas no ataque terrorista de 11 de setembro foi uma sombria advertência de que poderia acontecer aos EUA como resultado de seu envolvimento nas contradições globais, especialmente no Oriente Médio. Essa instabilidade foi enormemente exacerbada pelas ações imprevisíveis do atual ocupante da Casa Branca.

Por acaso, o drone acima mencionado nunca foi usado na véspera do Ano Novo. A razão apresentada foram as condições climáticas adversas. O presidente Trump pode ser o homem mais poderoso do mundo, mas parece que até ele não pode controlar o clima. O chefe de polícia Terence Monahan disse que o drone não poderia ser utilizado com segurança por causa das fortes chuvas e ventos. Em seu lugar, a polícia utilizou helicópteros para manter um olho na festa desde o alto.

Com ou sem o drone, a festa transcorreu sem maiores incidentes. A multidão gostou do espetáculo de fogos de artifício. Mas poucos dias mais tarde, em Bagdá, os céus logo foram iluminados por outro tipo de fogos de artifício, mais mortal. Depois de quase explodirem em 2019, os EUA e o Irã celebraram o novo ano ao som de tambores de guerra.

A escalada começou em 27 de dezembro, quando dezenas de mísseis, supostamente disparados por uma milícia apoiada pelo Irã chamada de Kataib Hizbullah, atingiram uma base militar iraquiana em Kirkuk, matando um empreiteiro estadunidense e soldados iraquianos. Dois dias mais tarde, os EUA responderam, sob objeções do governo iraquiano, com ataques aéreos em solo iraquiano que mataram pelo menos 25 milicianos e feriram mais de 50.

Depois que milhares de milicianos e manifestantes atacaram a embaixada estadunidense em Bagdá, o presidente Donald Trump disse que o Irã seria responsabilizado. “Eles pagarão um preço MUITO ALTO!” tuitou Mr. Trump. “Isso não é uma advertência; é uma ameaça. Feliz Ano Novo!”

Mr. Trump cumpriu sua palavra. No dia 3 de janeiro, ele emitiu a ordem para o assassinato do general iraniano Qassem Soleimani através de um ataque de drones em Bagdá. Com essa ação, o presidente dos EUA imediatamente lançou o mundo, e particularmente o Oriente Médio, em uma profunda crise.

Não contente em romper o acordo nuclear com o Irã, que havia sido penosamente alcançado depois de anos de diplomacia, Trump está empenhado em provocar o regime de Teerã ao enésimo grau. Ao fazer isso, está demonstrando seu completo desprezo pelos chamados aliados da América, que não foram consultados sobre essa nova aventura, embora ela afete seus interesses de forma muito direta.

A reação dos comentaristas mais de direita foi universalmente negativa. O reacionário Sunday Mail publicou imediatamente um artigo com a manchete:

“O assassinato do general iraniano Qassem Soleimani foi um crime de estado. Como alguém pode ser tão sangrentamente estúpido?”

Quem pode ser tão “sangrentamente estúpido”? Bom, Donald J Trump, naturalmente: o amiguinho íntimo de Boris Johnson, a quem o Sunday Mail tanto admira.

Este não é o lugar para se discutir os eventos no Oriente Médio. Isso foi muito bem abordado nesse site ontem. Basta dizer que os últimos acontecimentos somente serviram para sublinhar a extrema turbulência e instabilidade que agora existe em escala mundial e em todos os níveis: financeiro, econômico, social, político, diplomático e militar.

Todos esses são sintomas de um sistema socioeconômico enfermo que deixou de ser útil e constituem uma ameaça permanente à existência da civilização humana, senão para o próprio futuro do planeta.

Austrália em chamas

Uma das mais espetaculares exibições de fogos de artifício de Ano Novo costuma ocorrer em Sydney. Este ano não foi exceção, apesar do fato de ter sido descartado certo número de outras exibições de fogos de artifício por todo o país. A Austrália foi devastada por terríveis incêndios florestais intensificados pelas altas temperaturas e meses de secas.

Desde setembro, os incêndios no Leste da Austrália mataram seis pessoas, destruíram mais de 700 casas e cobriram de fumaça comunidades e cidades (incluindo Sydney). Tão grandes são as nuvens de fumaça causadas pelo fogo que podem ser vistas desde o espaço exterior e chegaram até a Nova Zelândia.

Os críticos da exibição de Sydney se opuseram com o argumento de que enviaria a mensagem errada. Recomendaram aos organizadores que a cancelassem e doassem o dinheiro aos agricultores e aos bombeiros. Mas por que deixar que um desastre natural que custou as vidas e as casas de incontáveis cidadãos atrapalhasse uma grande festa? Os fogos de artifício de Sydney prosseguiram conforme planejado.

Dizem que Nero, o imperador romano, tocava sua lira e cantava lindas canções enquanto Roma queimava. Seguindo os passos de seu venerável predecessor, o Lorde Prefeito de Sidney defendeu a decisão de continuar a exibição dos fogos de artifício na véspera do Ano Novo da cidade. Moore disse em uma conferência de imprensa que a véspera de Ano Novo era uma celebração importante que “daria esperanças às pessoas em um momento terrível”.

Essa é a ideia! Os australianos devem continuar sorrindo, mesmo quando suas casas são reduzidas a cinzas, suas cidades sufocam em meio a densas nuvens de fumaça venenosa e um número desconhecido de cadáveres carbonizados fique por baixo das ruínas. A coisa mais importante é manter o ânimo – e, acima de tudo, manter as margens de lucro dos hoteleiros, banqueiros e capitalistas.

A questão da rentabilidade estava obviamente na mente do prefeito, que nos lembrou o seguinte: “Muitas pessoas já chegaram e pagaram pelos hotéis e restaurantes, viajando de todo o mundo para estarem aqui na noite da véspera do Ano Novo. Isso gera 130 milhões de dólares australianos (69 milhões de libras; 91 milhões de dólares americanos) para a economia de Nova Gales do Sul, impulsiona nossa indústria turística, cria empregos e dá apoio a incontáveis pequenas empresas”.

As férias havaianas de Scott Morrison

Há apenas oito meses, Scott Morrison, o líder do Partido Liberal australiano, foi aclamado como um gênio da política por obter a vitória em uma eleição em que se esperava que ele perdesse, em parte por conta de seu apoio entusiástico à poderosa indústria carbonífera do país.

Como os tempos mudaram! À medida em que as temperaturas aumentam e a crise continua, muitos australianos acusaram o primeiro-ministro de não fornecer segurança ou apoio às comunidades afetadas pelo incêndio. Mr. Morrison e seu governo também enfrentaram uma reação crescente às suas políticas climáticas.

O primeiro-ministro australiano agora está sendo acusado de subestimar a severidade da crise. Isso parece um pouco injusto. Não cancelou ele suas bem-merecidas férias para visitar as zonas de incêndio? Sim, ele o fez, embora, verdade seja dita, essa decisão não tenha sido tomada de imediato, mas somente depois de cuidadosas considerações e de uma boa quantidade de má publicidade na imprensa.

A decisão de Mr. Morrison de sair de férias com sua família encontrou a reação previsivelmente irritada na mídia e nas redes sociais, sugerindo que ele não deveria estar “ausente da ação” em um momento de escalada da crise, particularmente porque ele havia criticado um comissário bombeiro por fazer o mesmo.

O gabinete de Mr. Morrison inicialmente negou que ele estivesse no Havaí, mas uma foto publicada na mídia social, que, aparentemente, o mostrava posando com outros turistas em uma praia tomando uma cerveja, parece lançar algumas dúvidas sobre a veracidade dessas indignadas negações. Frases como #OndeestáScoMo e #ToquemfogoemMo foram amplamente reproduzidas online.

Finalmente, o primeiro-ministro confirmou que estava de fato no Havaí, mas que estava voltando logo. Este anúncio tardio chegou logo depois que dois bombeiros – ambos voluntários e pais de crianças pequenas – haviam morrido. Foram os primeiros bombeiros a morrer durante a crise.

“Dados esses mais recentes e trágicos acontecimentos, retornarei a Sydney o mais rápido possível”, disse ele em uma declaração. Pode-se também dizer que o primeiro-ministro só pulou quando as chamas queimaram suas costas. O líder da “oposição”, Mr. Albanese, disse que o primeiro-ministro tinha “direito a férias”, mas criticou a “falta de informação e transparência”. Agora há uma guerra de palavras por ti!

O primeiro-ministro oferece às vítimas… suas orações

Tendo feito o sacrifício supremo de sacrificar, com relutância, seu refúgio havaiano, Mr. Morrison mostrou-se mais generoso em seus elogios aos bombeiros voluntários, muitos dos quais são experientes – o que é bom – mas também não-remunerados – o que é ainda melhor.

Esses homens e mulheres corajosos arriscam diariamente suas vidas para combater nesse gigantesco inferno. Alguns perderam suas vidas nas chamas. Mas Mr. Morrison é claramente da opinião de que a virtude é sua própria recompensa. Ele rejeitou com firmeza os pedidos de maior financiamento dos bombeiros, dizendo que os recursos existentes eram suficientes e que os voluntários “querem estar ali”.

No entanto, o primeiro-ministro é capaz de mostrar sua generosidade e humanidade de outras formas. Ele rapidamente ofereceu às vítimas desse inferno – seus “pensamentos e orações”. Ora, pensamentos e orações, como todos sabemos, são bastante baratos. Mas quando se trata de dinheiro e garantias de seguro para as pessoas angustiadas, Mr. Morrison de repente se cala, provavelmente porque o silêncio é altamente propício à eficácia da oração.

Até agora, é triste reconhecer, as orações do primeiro-ministro não parecem ter obtido resposta. As temperaturas subiram a novas alturas e os incêndios continuaram a se espalhar de forma alarmante, devastando comunidades inteiras. A marinha teve que ser chamada para resgatar pessoas das praias em áreas consumidas pelas chamas. O número de pessoas que perderam suas vidas ainda é desconhecido. Mas muitas pessoas perderam suas casas e todos os seus bens.

Enquanto isso, milhares de pessoas saíram às ruas de Sydney, onde a qualidade do ar foi levada a níveis perigosos. Uma mulher, cuja casa foi destruída por um incêndio florestal, ficou do lado de fora do prédio do parlamento em Camberra com um cartaz escrito a mão dizendo simplesmente: “Morrison, sua crise climática destruiu minha casa”.

A Austrália, com sua economia dependente do carvão, tem uma das mais altas taxas de emissão de gases de efeito estufa per-capita do mundo. O índice de desempenho das mudanças climáticas de 2020 classificou a Austrália em último lugar de 57 países por sua política climática, dizendo que havia recuado sob o governo de Morrison.

A vasta reserva inexplorada de carvão no Nordeste da Austrália havia sido durante anos o objeto de desejo da gigante industrial indiana Adani. Em junho, quando o governo australiano concedeu aprovação à empresa para extrair carvão da reserva, não estavam apenas recompensando seu lobby e politicagem, estavam também abrindo a porta para Adani realizar seu grande plano de uma cadeia de suprimento de carvão que se estendia por três países.

O carvão da operação australiana, conhecido como o projeto Carmichael, seria transportado à Índia, onde a empresa está construindo uma nova usina de energia por aproximadamente 2 bilhões de dólares para produzir eletricidade. Essa energia seria vendida ao lado, em Bangladesh. A vitória da Adani na Austrália ajudou a garantir que o carvão permaneça entrelaçado na economia e vidas desses três países (que, juntos, têm um quarto da população do planeta) durante anos, senão décadas.

Mas essas preocupações são descartadas pelo governo Liberal. O vice-primeiro-ministro da Austrália disse que o país deve continuar “absolutamente” a usar e explorar seu carvão. O vice-primeiro-ministro Michael McCormack rejeitou os questionamentos como preocupações de “esquerdistas delirantes do centro da cidade”, adicionando: “Tivemos incêndios na Austrália desde o início dos tempos”. Pode ser, mas não em uma escala tão rápida e devastadora como a presente conflagração.

Sob o capitalismo, os interesses de longo prazo do meio-ambiente e o futuro da própria raça humana chegam em segundo lugar depois da renda, dos juros e dos lucros. O lucro deve vir primeiro, sempre. As vidas, a saúde e a segurança das pessoas simples nunca podem atrapalhar a ganância dos capitalistas por mais-valia.

A atitude desses políticos burgueses com relação ao destino de milhões de australianos comuns é uma característica do desprezo demonstrado pelas grandes empresas e seus representantes políticos em todos os países. Tudo o que se precisa é que alguém ponha nas mãos de Mr. McCormick e seu patrão uma lira de segunda mão e uma folha de versos do Imperador Nero. Então, o quadro ficaria completo.

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